Qual a diferença entre a gula e o transtorno compulsivo alimentar periódico?
Dia 26 de janeiro é considerado o Dia da Gula, que é, segundo algumas doutrinas religiosas, conhecida por ser um dos setes pecados capitais.
Dessa forma, a gula está diretamente relacionado com o egoísmo e seria classificado como o desejo de algo desnecessários, apenas pelo prazer.
No entanto, a gula existe num campo psicológico e psiquiátrico? Como a medicina pode explicar a gula?
Para isso a equipe Inpa realizou uma entrevista com a psiquiatra Dra. Helena Moura, que é especialista em Dependência Química e em Psicogeriatria. Confira!
Entrevista |
Inpa: Hoje é considerado o dia da Gula. A gula, para a psiquiatria, existe ou esse é apenas um conceito popular e religioso?
Dra. Helena Moura: Não existe um transtorno psiquiátrico da gula. E é interessante perceber que a gula está associada ao prazer, ou seja, a pessoa come e pode se exceder, porque sente muito prazer e, tudo que é prazeroso, a gente quer fazer de novo.
Porém, na psiquiátrica, nós temos o transtorno da compulsão alimentar, em que a pessoa come para aliviar um sofrimento e não para ter prazer. No entanto, após um episódio de compulsão alimentar, a pessoa acaba se sentindo muito pior, com sensação de culpa e vergonha.
Então, o transtorno da compulsão alimentar se caracteriza por, pelo menos uma vez semana ao longo dos últimos três meses, um episódio de compulsão.
E o que é um episódio? É quando em um período de até duas horas, a pessoa consome uma quantidade muito grande de comida, que é muito maior do que o esperado para a pessoa ou para o contexto em que ela está inserida. Afinal, é normal em alguns contextos as pessoas comerem um pouco mais, como no Natal ou na casa da avó.
Porém, no caso da compulsão, o episódio acontece fora de contexto e depois de cada episódio a pessoa tem a sensação de perda de controle.
Dessa forma, a pessoa tem uma sensação de que ela não consegue controlar o impulso de comer e depois que ela começa ela não consegue parar, mesmo que ela esteja desconfortável fisicamente.
Em geral, as pessoas fazem isso escondido e não deixam ninguem da familia perceber. Logo, são pessoas que sofrem por muito tempo em silêncio, o que pode, futuramente, acarretar outros problemas, além do risco de obesidade e ganho de peso, mas, também, de começar a sofrer de depressão ou de ansiedade.
Inpa: Há algum tipo de alimento preferido na compulsão alimentar? Ou varia para cada paciente?
Dra. H.M: Para configurar o transtorno não há necessidade da pessoa comer compulsivamente um alimento especial, isso pode variar de pessoa para pessoa.
Há alguns indivíduos que comem mais carboidratos, outros comem mais doces e outros mais salgados.
Dessa maneira, não há a necessidade de ser um alimento específico para caracterizar o transtorno.
Inpa: E as pessoas que têm episódios de compulsão apenas à noite?
Dra. H.M: Dos transtornos de compulsão alimentar, acredito que esse é o que a gente menos conhece ainda.
Desse modo, sabemos que há algumas pessoas com esse padrão e que seria como se fosse um comer compulsivo, mas com predominância no horário da noite. Então, entre 25% ou mais de todo o consumo calórico da pessoa ocorre num breve momento durante à noite.
Portanto, em geral, são pessoas que ou depois da última refeição do dia (depois do jantar) ainda sentem uma necessidade muito grande de comer; ou pessoas que, às vezes, acordam no meio da noite e têm os atos de comer compulsivo.
O que sabemos até hoje é que, provavelmente, essas pessoas têm alguma desregulação hormonal ou alguma associação com transtornos do sono. Então, é comum a pessoa acreditar que só vai voltar a dormir depois de comer.
Inpa: O transtorno compulsivo alimentar periódico é um quadro que pode estar relacionados com outros transtornos psicológicos?
Dra. H.M: Sim, o transtorno de comer compulsivo ou está associado ou pode ser uma consequência de outro transtorno psiquiátrico.
A gente sabe que é muito comum os episódios de comer compulsivo serem precedidos de alguma emoção negativa, como a ansiedade, a tristeza, a raiva, o tédio.
Entretanto, ele pode ser a causa, ou seja, a pessoa em razão da pessoa estar sofrendo desse problema, ela começa a desenvolver outros problemas psiquiátricos, como depressão e ansiedade.
Inpa: Qual a diferença entre o transtorno da compulsão alimentar periódica e a bulimia nervosa?
Dra. H.M: Na bulimia nervosa, os episódios de comer compulsivos são sempre seguidos por um tipo de mecanismo compensatório, que, em geral, é ou através da purgação (quando a pessoa induz o vômito) ou do uso de laxantes ou a pessoa passa o dia seguinte inteiro em jejum.
No transtorno do comer compulsivo a gente não observa esse comportamento. A pessoa tem os episódios de compulsão, mas em seguida não tenta compensar, mesmo que sejam pessoas que tentam insistentemente fazer dietas.
Desse modo, são pessoas que estão o tempo todo tentando fazer alguma dieta, mas, em alguns momentos, a dieta não funciona ou a pressão estoura e a pessoa acaba comendo excessivamente.
Inpa: Qual é a relação da compulsão alimentar com a obesidade?
Dra. H.M: Sabe-se que a obesidade é um dos fatores de risco. Então, é mais comum alguém com compulsão alimentar ter, também, obesidade.
Afinal, o fato de estar comendo muito aumenta esse risco. No entanto, não é necessariamente todo mundo com o transtorno é obeso.
É interessante contar, também, que comparando duas pessoas obesas, aquela que tem a compulsão alimentar tende a sofrer muito mais de depressão, de ansiedade e de insatisfação com o corpo do que a pessoa obesa, que não tem compulsão alimentar.
Inpa: Ainda, há outros problemas físicos e mentais que a compulsão alimentar pode desencadear?
Dra. H.M: Além da obesidade, pode acontecer de desenvolver os problemas físicos relacionado com isso, os distúrbios metabólicos, como diabetes, hipertensão e outros riscos cardiovasculares.
Inpa: Transtornos alimentares compulsivos periódicos podem ser observados durante a infância?
Dra. H.M: Sim, é possível. O transtorno de compulsão alimentar é mais comum na vida adulta, mas é comum surgir na adolescência e já se pode observar os comportamentos nesse sentido.
Inpa: Há, claramente, uma determinação genética neste transtorno alimentar?
Dra. H.M: Os transtornos alimentares, em geral, tem uma questão bem interessante, porque sabemos que pode ter uma base genética, mas ainda estamos tentando entender melhor.
No entanto, tem uma questão cultural muito forte. Dessa forma, se a pessoa está muito exposta a pressão de estar com o corpo “perfeito”, se dentro da família dela esse é um fator muito importante ou se a profissão que ela exerce tem uma pressão muito maior; essas pessoas têm uma predisposição e unindo isso com a genética, elas são mais predispostas a desenvolver algum transtorno alimentar.
Inpa: É observada diferença na incidência entre homens e mulheres?
Dra. H.M: O transtorno de compulsão alimentar pode acontecer em homens e mulheres. A anorexia e a bulimia é mais comum ver em mulheres, mas o transtorno do comer compulsivo pode ser tanto em homens quanto em mulheres.
Inpa: Quais os tratamentos indicados?
Dra. H.M: O tratamento essencialmente tem que envolver a terapia. Então, a terapia é essencial para a pessoa entender melhor seus sentimentos, aprender outras formas de lidar com as emoções, que não seja através de um episódio de comer compulsivo.
Entretanto, há algumas medicações que, também, podem ajudar. Uma medicação da família dos antidepressivos, já se sabe que tem um mecanismo que ajuda no controle da compulsão. Ainda, eles também são usados para o TOC (transtorno obsessivo compulsivo). Então, existe algum mecanismo que além de ajudar na depressão podem, também, ajudar na compulsão.
Inpa – Instituto de Psicologia Aplicada, Asa Sul, Brasília – DF, Brasil.